O cinema de quebrada e a cultura periférica
Se em 1965 o cineasta Glauber Rocha, maior nome do movimento Cinema Novo, afirmou na sua estética da fome que o Cinema Novo buscava filmar o povo brasileiro, sua fome, suas contradições e cultura, inaugurando toda uma tradição de presença do povo na tela, no século XXI, diante de filmes comerciais denominados de favela movie (filmes como “Cidade de Deus”, “Carandiru”, “Tropa de Elite”), cineastas oriundos de comunidades periféricas urbanas, comunidade indígenas, quilombolas, sertanejas, trazem uma revolução para a história do cinema brasileiro, o povo, isto é, grupos historicamente oprimidos e silenciados, não está apenas na tela, mas atrás das câmeras, na ilha de edição, escrevendo roteiros, contando suas histórias. Boa parte desses cineastas se autodenominaram cinema de periferia, cinema de quebrada, cinema de favela, cinema de comunidade, são termos que se referem a um movimento de protagonismo periférico no cinema e de diálogo com a memória popular. Esse filme nasce em meio a esse movimento, é realizado pelo coletivo Companhia Bueiro Aberto, grupo formado por cineastas guarulhenses que há 10 anos produzem filmes sobre a memória dos bairros da cidade. Numa metáfora, imagine o Buscapé, personagem central do filme “Cidade de Deus”, sendo o diretor de Cidade de Deus? Talvez ele fizesse até outro filme. Imagine Manuel, o camponês do filme “Deus e o diabo na terra do sol”, sendo o cineasta que filma o sertão?
No caso das periferias urbanas, quais filmes vamos fazer nesses espaços? Quais histórias nascem nas quebradas? O que os outros esperam de uma narrativa periférica? Para nós, cineastas de periferia, entendemos que o cinema brasileiro comercial, sobretudo os favela movie, embora sejam filmes importantes e que abriram discussões acerca do imaginário do nosso povo, contribuem para uma visão estereotipada das periferias, afinal, as favelas são apresentadas predominantemente como espaços de violência e tráfico de drogas. Além dos filmes comerciais, os programas sensacionalistas de televisão, principalmente telejornais policialescos, entram na periferia para filmar a desgraça e torná-la um espetáculo rentável. Em 2009, o Coletivo NCA realizou o documentário “Videolência”, filme que faz uma reflexão potente e apresenta os coletivos de cinema periférico de algumas periferias brasileiras. Os cineastas falam de uma imagem que violenta, é a violência do imaginário que agride a subjetividade de populações periféricas e reduz a vida nas quebradas a um horizonte de criminalidade e espetáculo, retratando as pessoas como violentas ou coitadas. Mas os cineastas periféricos não têm posição passiva, são leitores, estudiosos, debatem a história do cinema e buscam romper o estereótipo.
Então, quais estórias vamos contar nas periferias? Quais histórias estão nas periferias da cidade de Guarulhos? Desde que surgiu, em 2014, a Companhia Bueiro Aberto faz um trabalho semelhante a diversos coletivos pelo Brasil, adentrar a memória da quebrada. Essa quebrada tem sim violência, tem tráfico de drogas, tem precariedade econômica e social, mas ela não se reduz a isso, há muito mais, há toda uma diversidade de povos e culturas, há toda uma comunidade que ergue seu modo de vida como ergue suas casas. A periferia também é resistência, é subjetividade, é invenção e é luta. Não abdicamos de falar dos problemas, mas queremos mostrar que temos uma potência para superá-los política e culturalmente. E assim, dentro dos nossos filmes, a maioria documentários, percebemos que as grandes estórias estão na nossa rua, nos nossos bairros, na nossa cidade. Guarulhos, cidade do Aeroporto e de desigualdade social, é para nós um portal no qual descobrimos nossas raízes. Filmamos “Numa roda de choro”, 2015, direção de Daniel Neves, documentário que retrata uma roda de choro que ocorre há anos do bairro do INOCOOP e que discute a influência negra na música brasileira e na nossa cidade. No mesmo ano de 2015, filmamos “Bamba de Vila”, direção de Renato Queiroz, obra que faz um panorama sobre a vida e trajetória de sambistas do Bairro do Jardim Tranquilidade, mostrando como o samba tem uma raiz popular e periférica. Em 2016, lançamos “Cantoria urbana”, direção de Daniel Neves, filme que reflete a potência da viola caipira e da viola nordestina no nosso município, discutindo a forte migração nordestina que nos forma. Em “Um rolê no Itapuã”, 2018, direção de Daniel Neves, mostramos como apenas um bairro da cidade tem artistas das mais variadas linguagens, pessoas que fazem arte mesmo sem as devidas condições. No campo da literatura, encontramos Dona Maria no bairro do Bonsucesso, escritora anônima, migrante nordestina que foi personagem principal do documentário “Minhas Composições”, 2017, direção de Daniel Neves e Renato Queiroz. Na série “Guarulhos, letras de uma cidade dormitório”, provocamos e discutimos, através do olhar de escritores periféricos, o estereótipo de nossa cidade como apenas um dormitório, falando de nossas raízes nordestinas e europeias. Em “Tupinambá subiu a serra”, 2020, direção de Daniel Neves, filme premiado em diversos festivais pelo Brasil, falamos de nossas raízes indígenas. E tem ainda o premiado longa-metragem de ficção “Para Miguel, com Amor”, 2020, direção de Daniel Neves, que nos convida a passear pela memória da cidade desde os anos 70 até os dias atuais.
Citamos aqui apenas uma parte de nossa filmografia, a Companhia Bueiro Aberto realizou 102 produções na cidade entre curtas, longas, documentários, ficções, web séries, clipes e vídeos-poemas, a esmagadora maioria produzidos de maneira independente, contando com a ajuda do mutirão da quebrada, quase todos esses filmes estão disponíveis no canal Companhia Bueiro Aberto no Youtube e boa parte rodou em festivais nacionais e internacionais, o coletivo tem ao todo 12 prêmios. Percebemos que fizemos muito, mas quando observamos a riqueza cultural da cidade, a potência dos bairros periféricos, ainda é pouco, daí a importância dos diversos coletivos que se formaram na cidade nos últimos anos, construindo uma potente cena de cinema independente. Guarulhos é uma cidade de diversos povos: negros, indígenas, nordestinos, imigrantes europeus, caipiras, um retrato da diversidade étnica brasileira, que também traz conflitos.
O filósofo Walter Benjamin, no seu texto “Sobre o conceito de história”, afirma que “o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (Benjamin, 1994, p. 223). Segundo Benjamin, a história oficial é contada pelos vencedores e tem como foco os considerados grandes personagens e acontecimentos, apagando a memória dos oprimidos. Mas, como afirma o dramaturgo Bertold Brecht, algumas questões ficam: “quem construiu a muralha da China? Quem construiu as pirâmides do Egito? Quem ergueu os grandes monumentos de nossa civilização?”. São pessoas anônimas que não estão nos livros da história oficial, que não são lembradas em feriados e monumentos. Para nós, são esses anônimos que têm as grandes histórias.
De
um lado, nosso objetivo foi entrevistar esses músicos, de outro acompanhar um
pouco de suas construções artísticas.
Como afirma Benjamin, o historiador que rompe com a história oficial, o
cineasta que faz uma contra-memória, precisa de buscar novas fontes, precisa de
ver cada casa na quebrada como um museu. No processo de uma arqueologia do
anonimato, nossas fontes são a oralidade, o material de arquivo (fotos e
vídeos) presente nos acervos pessoais e as imagens que construiremos da
quebrada. Agora temos a possibilidade de nós mesmos também construirmos imaginários, pensar
nossa quebrada, olhar para nós e para os nossos, em suma, no caso desse filme, cantar e filmar a Vila Rio.
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