Do lixão nasce flor
Há cerca de 10 anos atrás, quando
começamos a pensar em fazer cinema, refletimos sobre um nome, nasceu a
“Companhia Bueiro Aberto”. Por que esse nome? Esta pergunta nos foi feita
várias vezes. Lembro que meu irmão, Ton Neves, um mestre que nos ensinou a
editar e fotografar, disse pra mim: “Mano, esse nome é muito underground,
talvez não esteja de acordo com a proposta de vocês, é distante do povo”. De
certa forma, eu concordo com Ton. Sempre que falo o nome do nosso coletivo vem
a mesma pergunta. Se pensarmos de maneira direta, o bueiro é o lugar onde está
toda a sujeira da sociedade. Então, estamos fazendo filme sobre a sujeira?
A resposta é sim e não. Bueiro
Aberto é uma metáfora. Primeiro, quando pensávamos no cinema, queríamos nos
contrapor ao cinema comercial, aquele cinema, segundo Glauber Rocha: “que
propaga um mundo falsificado e enfeitado, cheio de moral burguesa e
conservadora, com clichês mentirosos e entorpecedores”. Ao contrário, com
referência no Cinema Novo e no Cinema Marginal, nosso cinema é sujo, câmera na
mão, estórias suburbanas, ideia na cabeça, sem recursos, contrapondo ao cinema
da indústria, uma estética suja porque a estética limpa está de acordo com a
sociedade capitalista, queríamos provocar. Em segundo lugar, como moradores de
bairros periféricos, queríamos dizer que esse lugar em que vivemos, lugar
considerado sujo pela elite, lugar onde se vê o córrego a céu aberto, nasce uma
flor. Tanto é assim que nosso primeiro filme se chama “Uma flor nasceu no
esgoto”(direção coletiva, 2014). Do submundo urbano a gente retira nossa
poética, nossas estórias, também nosso grito de indignação.
Claro que de lá para cá muita coisa
mudou na nossa percepção. Aliás, posso dizer que nosso coletivo tem diferentes
cabeças com pensamentos diversos. Temos uma unidade, debatemos filmes e ideias,
mas temos a liberdade de pensar conforme a subjetividade de cada um. Para mim,
um elemento fundamental no nome Companhia Bueiro Aberto tem a ver com a
“arqueologia do anonimato”. Acredito que nosso cinema trabalha muito a ideia de
história e memória da classe trabalhadora, sobretudo de sua cultura.
Além do cinema, eu curso doutorado em
filosofia na UFABC. Minha tese faz uma relação entre o cinema de quebrada e o
filósofo Walter Benjamin. Segundo Benjamin, existe uma história oficial, a
história dos vencedores, da classe dominante: que está nos feriados,
monumentos, nomes de ruas, livros... Ela conta dos grandes personagens e apaga
a memória dos que ele chama de vencidos, são os trabalhadores. Afinal, como
disse o dramaturgo Bertold Brecht, a história só vai lembrar dos engenheiros e Faraós
que fizeram, por exemplo, as pirâmides do Egito, não dos escravos que
trabalharam arduamente.
Da mesma maneira, podemos perguntar:
quem construiu as grandes cidades brasileiras? Quem faz as cidades funcionarem?
Quem ergueu Guarulhos? Não são os grandes nomes, não são as celebridades, são
as pessoas anônimas, “simples”, que todos os dias dedicam seu suor para que
este mundo funcione. O tempo passa e tais pessoas não são lembradas, muito
menos valorizadas. Será que o seu vizinho daria um filme? Será que seu bairro
daria um filme? Será que você daria um filme? Acreditamos que sim, pretendemos
contar justamente essas estórias.
No texto “O narrador”, Walter Benjamin
afirmou que a humanidade estava perdendo o hábito de contar estórias, isso lá
pelos anos 20 e 30. Ao ler esse texto, lembrei de quantas vezes ficamos a
madrugada toda na calçada contando e ouvindo estórias, de quantas vezes
sentamos na sala de casa para ouvir nossos avôs. Mano, que época da hora!
Parece que perdemos um pouco esse hábito, parece que a tecnologia nos
enclausurou dentro de casa, parece que perdemos a paciência de escutar. Tenho
impressão que a figura popular do contador de estórias orais está acabando. Essas
reflexões passam pela minha cabeça e acho que estou tentando retomar esse
passado nos filmes que faço, sentar ali com a senhora, os manos, ligar a
câmera, ouvir estórias e depois montar tudo, tenho certeza que precisamos
escutar mais.
Porém, esse é um papo de quem está
ficando velho, aquela velha frase: “na minha época era melhor”. O mundo mudou.
O passado é da hora, mas ele só existe no presente, contamos estórias agora,
nesse momento. Certa vez ouvi de um mano indígena: “Antigamente, quando um
ancião morria na aldeia era como se fechasse um livro. Agora, com essa
tecnologia, a gente grava e o livro continua aberto, a gente mantém nossa
cultura” (fala de Pedro Pankararé no filme “Imagens Indígenas”). E olha só,
agora estamos contando estórias da quebrada, estórias escondidas, por meio da
tecnologia, do cinema.
O Rap também fez isso através da música, ligávamos o rádio e ouvíamos “Um homem na estrada”, de Racionais MCs. Os anos se passaram, abrimos o Youtube e ouvimos “Lyon Autoestima”, MC Regra”, “A visão de João Rap”, “BML” e tantos outros manos e minas da quebrada, um Rap que também é nossa memória. Estamos aqui para lembrar dos esquecidos.
Porém, nunca me achei porta-voz da
quebrada, todo filme que faço é um recorte e um ponto de vista, falo dos
esquecidos, mas não represento ninguém. Existem várias quebradas, várias
subjetividades, vários olhares, várias estéticas. O Rap também é assim, muda,
se transforma, tem vários estilos, está vivo, estamos vivos e em movimento.
Contar nossas estórias nem sempre é
fácil, existem memórias traumáticas. No Rap mesmo, ouvimos músicas que contam
chacinas e assassinatos, por exemplo. Tem horas que os manos e minas não querem
cantar isso, tem hora que nós não queremos filmar isso. Afinal, agora
contrariando Walter Benjamin, nosso passado não é só de fracasso, a gente tem
coisa bonita pra falar, nossas lutas pra sobreviver, nossos amores, nossa
cultura, também temos nossa paz, ainda que o sistema nos imponha a guerra. O
Grupo Autoestima, que é retratado no filme “O Rap da Vila Rio”, trouxe muito
essa ideia, a gente tem que se amar porque: “tudo, tudo vai, tudo é fase,
irmão, logo mais vamu rebentar no mundão”. Já disse o poeta Sergio Vaz, “nosso
povo é lindo e inteligente”.
Mas, quando necessário, vamos
lembrar também dos problemas, da violência policial, do descaso do estado, da
opressão da burguesia, da falta de saúde e de educação, precisamos denunciar as
patifarias do sistema, essa ideia a gente não perde.
Então, contar as estórias que não
estão na mídia e nos grandes monumentos é essa contradição, é tipo a quebrada,
cheia de esquinas, vielas, tijolos e madeiras, caminhos que vão e vem. É você
amar e odiar seu bairro porque a gente vive na precariedade ao mesmo tempo que
estamos em casa, tipo o passarinho no ninho, gostamos da nossa quebrada, temos
orgulho. E nessa variação de sentimentos, entre a vitória e a derrota, no Rap
ou no cinema, vamos contando as estórias escondidas, aquelas que pra gente tem
mais valor. Como diz Lyon Autoestima: “o diamante não vem da lama? Do lixão não
nasce flor? Por que um coração não pode voltar a ter amor?”.
TEXTO ESCRITO POR DANIEL NEVES, DIRETOR DO FILME "O RAP DA VILA RIO"
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