Do lixão nasce flor

Descobri que o maior filme de todos não está em Hollywood, 
está aqui do lado, na nossa rua, nas estórias da quebrada

            Há cerca de 10 anos atrás, quando começamos a pensar em fazer cinema, refletimos sobre um nome, nasceu a “Companhia Bueiro Aberto”. Por que esse nome? Esta pergunta nos foi feita várias vezes. Lembro que meu irmão, Ton Neves, um mestre que nos ensinou a editar e fotografar, disse pra mim: “Mano, esse nome é muito underground, talvez não esteja de acordo com a proposta de vocês, é distante do povo”. De certa forma, eu concordo com Ton. Sempre que falo o nome do nosso coletivo vem a mesma pergunta. Se pensarmos de maneira direta, o bueiro é o lugar onde está toda a sujeira da sociedade. Então, estamos fazendo filme sobre a sujeira?

            A resposta é sim e não. Bueiro Aberto é uma metáfora. Primeiro, quando pensávamos no cinema, queríamos nos contrapor ao cinema comercial, aquele cinema, segundo Glauber Rocha: “que propaga um mundo falsificado e enfeitado, cheio de moral burguesa e conservadora, com clichês mentirosos e entorpecedores”. Ao contrário, com referência no Cinema Novo e no Cinema Marginal, nosso cinema é sujo, câmera na mão, estórias suburbanas, ideia na cabeça, sem recursos, contrapondo ao cinema da indústria, uma estética suja porque a estética limpa está de acordo com a sociedade capitalista, queríamos provocar. Em segundo lugar, como moradores de bairros periféricos, queríamos dizer que esse lugar em que vivemos, lugar considerado sujo pela elite, lugar onde se vê o córrego a céu aberto, nasce uma flor. Tanto é assim que nosso primeiro filme se chama “Uma flor nasceu no esgoto”(direção coletiva, 2014). Do submundo urbano a gente retira nossa poética, nossas estórias, também nosso grito de indignação.

            Claro que de lá para cá muita coisa mudou na nossa percepção. Aliás, posso dizer que nosso coletivo tem diferentes cabeças com pensamentos diversos. Temos uma unidade, debatemos filmes e ideias, mas temos a liberdade de pensar conforme a subjetividade de cada um. Para mim, um elemento fundamental no nome Companhia Bueiro Aberto tem a ver com a “arqueologia do anonimato”. Acredito que nosso cinema trabalha muito a ideia de história e memória da classe trabalhadora, sobretudo de sua cultura.

(Lyon Autoestima no filme "O Rap da Vila Rio"

            Além do cinema, eu curso doutorado em filosofia na UFABC. Minha tese faz uma relação entre o cinema de quebrada e o filósofo Walter Benjamin. Segundo Benjamin, existe uma história oficial, a história dos vencedores, da classe dominante: que está nos feriados, monumentos, nomes de ruas, livros... Ela conta dos grandes personagens e apaga a memória dos que ele chama de vencidos, são os trabalhadores. Afinal, como disse o dramaturgo Bertold Brecht, a história só vai lembrar dos engenheiros e Faraós que fizeram, por exemplo, as pirâmides do Egito, não dos escravos que trabalharam arduamente.

            Da mesma maneira, podemos perguntar: quem construiu as grandes cidades brasileiras? Quem faz as cidades funcionarem? Quem ergueu Guarulhos? Não são os grandes nomes, não são as celebridades, são as pessoas anônimas, “simples”, que todos os dias dedicam seu suor para que este mundo funcione. O tempo passa e tais pessoas não são lembradas, muito menos valorizadas. Será que o seu vizinho daria um filme? Será que seu bairro daria um filme? Será que você daria um filme? Acreditamos que sim, pretendemos contar justamente essas estórias.

(Fotografia caseira usada no documentário "Ilusão do Parafuso") 

            No texto “O narrador”, Walter Benjamin afirmou que a humanidade estava perdendo o hábito de contar estórias, isso lá pelos anos 20 e 30. Ao ler esse texto, lembrei de quantas vezes ficamos a madrugada toda na calçada contando e ouvindo estórias, de quantas vezes sentamos na sala de casa para ouvir nossos avôs. Mano, que época da hora! Parece que perdemos um pouco esse hábito, parece que a tecnologia nos enclausurou dentro de casa, parece que perdemos a paciência de escutar. Tenho impressão que a figura popular do contador de estórias orais está acabando. Essas reflexões passam pela minha cabeça e acho que estou tentando retomar esse passado nos filmes que faço, sentar ali com a senhora, os manos, ligar a câmera, ouvir estórias e depois montar tudo, tenho certeza que precisamos escutar mais.

            Porém, esse é um papo de quem está ficando velho, aquela velha frase: “na minha época era melhor”. O mundo mudou. O passado é da hora, mas ele só existe no presente, contamos estórias agora, nesse momento. Certa vez ouvi de um mano indígena: “Antigamente, quando um ancião morria na aldeia era como se fechasse um livro. Agora, com essa tecnologia, a gente grava e o livro continua aberto, a gente mantém nossa cultura” (fala de Pedro Pankararé no filme “Imagens Indígenas”). E olha só, agora estamos contando estórias da quebrada, estórias escondidas, por meio da tecnologia, do cinema.

(Imagem da Favela do 5 para o filme "O Rap da Vila Rio")

            O Rap também fez isso através da música, ligávamos o rádio e ouvíamos “Um homem na estrada”, de Racionais MCs. Os anos se passaram, abrimos o Youtube e ouvimos “Lyon Autoestima”, MC Regra”, “A visão de João Rap”, “BML” e tantos outros manos e minas da quebrada, um Rap que também é nossa memória. Estamos aqui para lembrar dos esquecidos.

            Porém, nunca me achei porta-voz da quebrada, todo filme que faço é um recorte e um ponto de vista, falo dos esquecidos, mas não represento ninguém. Existem várias quebradas, várias subjetividades, vários olhares, várias estéticas. O Rap também é assim, muda, se transforma, tem vários estilos, está vivo, estamos vivos e em movimento.

       Contar nossas estórias nem sempre é fácil, existem memórias traumáticas. No Rap mesmo, ouvimos músicas que contam chacinas e assassinatos, por exemplo. Tem horas que os manos e minas não querem cantar isso, tem hora que nós não queremos filmar isso. Afinal, agora contrariando Walter Benjamin, nosso passado não é só de fracasso, a gente tem coisa bonita pra falar, nossas lutas pra sobreviver, nossos amores, nossa cultura, também temos nossa paz, ainda que o sistema nos imponha a guerra. O Grupo Autoestima, que é retratado no filme “O Rap da Vila Rio”, trouxe muito essa ideia, a gente tem que se amar porque: “tudo, tudo vai, tudo é fase, irmão, logo mais vamu rebentar no mundão”. Já disse o poeta Sergio Vaz, “nosso povo é lindo e inteligente”.

(Mc Regra é entrevistado no filme "O Rap da Vila Rio"

          Mas, quando necessário, vamos lembrar também dos problemas, da violência policial, do descaso do estado, da opressão da burguesia, da falta de saúde e de educação, precisamos denunciar as patifarias do sistema, essa ideia a gente não perde.

            Então, contar as estórias que não estão na mídia e nos grandes monumentos é essa contradição, é tipo a quebrada, cheia de esquinas, vielas, tijolos e madeiras, caminhos que vão e vem. É você amar e odiar seu bairro porque a gente vive na precariedade ao mesmo tempo que estamos em casa, tipo o passarinho no ninho, gostamos da nossa quebrada, temos orgulho. E nessa variação de sentimentos, entre a vitória e a derrota, no Rap ou no cinema, vamos contando as estórias escondidas, aquelas que pra gente tem mais valor. Como diz Lyon Autoestima: “o diamante não vem da lama? Do lixão não nasce flor? Por que um coração não pode voltar a ter amor?”.

TEXTO ESCRITO POR DANIEL NEVES, DIRETOR DO FILME "O RAP DA VILA RIO"

(Diogo Fonseca filma a desenhista Amanda Moura 
no filme"Um Rolê no Itapuã"


Comentários

Postagens mais visitadas